A promulgação da Portaria Normativa SE/CGU nº 226, de 9 de setembro de 2025, representa um dos marcos mais relevantes da política nacional de integridade desde a Lei Anticorrupção (Lei nº 12.846/2013). Editada com fundamento no Decreto nº 12.304/2024, que regulamentou o art. 25, §4º, da Lei nº 14.133/2021 (Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos), a norma estabelece um procedimento técnico e metodológico para a avaliação de programas de integridade de pessoas jurídicas que contratam com a Administração Pública Federal.
Mais do que um ato infralegal, a Portaria 226/2025 consolida um modelo de aferição objetiva e comparável de programas de integridade, alinhando o Brasil às práticas internacionais de compliance assessment e inserindo a integridade como condição efetiva de capacidade contratual.
1. Contexto normativo e fundamentos jurídicos
O art. 25, §4º, da Lei nº 14.133/2021 introduziu uma inovação central: nas contratações de obras, serviços e fornecimentos de grande vulto, o licitante vencedor deverá comprovar a existência de um Programa de Integridade efetivamente implementado, em prazo determinado após a assinatura do contrato.
O Decreto nº 12.304/2024 regulamentou essa exigência, atribuindo à Controladoria-Geral da União (CGU) a competência para definir os critérios de avaliação e o sistema de monitoramento. Nesse contexto, a Portaria 226/2025 é o instrumento executivo que operacionaliza a política nacional de integridade no setor público, por meio do Sistema de Avaliação e Monitoramento de Programas de Integridade (SAMPI).
A portaria aplica-se em três hipóteses principais:
- Contratações de grande vulto;
- Desempate entre propostas licitatórias; e
- Reabilitação de licitante ou contratado sancionado.
Em todos os casos, a CGU atua como autoridade avaliadora, cabendo-lhe verificar a existência, o grau de maturidade e a efetividade dos mecanismos de integridade apresentados pelas pessoas jurídicas contratadas.
2. Estrutura e metodologia de avaliação
A Portaria estabelece um modelo técnico de avaliação composto por onze áreas temáticas (acrescida de uma décima segunda, nos casos de reabilitação), e cento e cinco questões objetivas, distribuídas em níveis de complexidade e de evidência (QN1 a QN5).
Essas áreas abrangem desde o comprometimento da alta direção até controles contábeis, gestão de riscos, canais de denúncia, transparência e responsabilidade socioambiental.
O instrumento de avaliação é dividido em dois formulários:
- Formulário de Perfil, de caráter declaratório, destinado a contextualizar o porte, o setor, a governança e a exposição da empresa ao poder público; e
- Formulário de Conformidade, que exige comprovação documental da implantação, aplicação e monitoramento do programa de integridade.
A pontuação é atribuída conforme critérios objetivos:
- QN1 (20 pontos): existência de elementos mínimos e fundamentais;
- QN2 e QN3 (5 a 15 pontos): existência formal e detalhamento de políticas e procedimentos;
- QN4 e QN5 (18 a 25 pontos): aplicação prática e resultados das medidas de integridade.
O resultado final classifica o programa como:
- Implantado (quando atinge integralmente os critérios mínimos e percentuais exigidos); ou
- Não implantado, nas hipóteses de insuficiência de pontuação ou impossibilidade de avaliação.
A metodologia é expressamente orientada pela proporcionalidade, considerando o porte da empresa, o setor de atuação, a estrutura de governança, o grau de interação com o setor público e a abrangência geográfica das operações.
3. Obrigações das empresas contratadas
As empresas vencedoras de licitações de grande vulto deverão submeter, no prazo de 30 dias após seis meses da assinatura contratual, seus programas de integridade para avaliação via SAMPI.
O não cumprimento dessa obrigação gera consequências graduais, que vão desde advertência e multa (1% a 5% do valor do contrato) até impedimento e declaração de inidoneidade, conforme os arts. 29 a 35 da Portaria.
São dispensadas dessa submissão apenas as empresas:
- integrantes da lista vigente do Programa Empresa Pró-Ética;
- já avaliadas pela CGU ou outro órgão com metodologia compatível nos últimos 24 meses; ou
- com avaliação em curso em outro contrato federal.
A avaliação positiva tem efeito liberatório, atestando o cumprimento da exigência legal e conferindo maior credibilidade institucional ao contratado.
4. Programas de integridade como critério de desempate e reabilitação
A norma também amplia a utilização dos programas de integridade como critério de desempate entre licitantes, nos termos do art. 60, IV, da Lei nº 14.133/2021.
Para tanto, admite-se como comprovação:
- o resultado de autoavaliação no Pacto Brasil pela Integridade Empresarial (novo instrumento de autorregulação da CGU);
- o reconhecimento como Empresa Pró-Ética; ou
- a certificação prévia de programa avaliado pela CGU.
Nos casos de reabilitação de licitantes sancionados, a avaliação é mais rigorosa: exige-se comprovação de medidas de remediação, substituição de gestores envolvidos em ilícitos, e aperfeiçoamento dos controles internos.
Somente a avaliação positiva do programa de integridade reabilitado atesta o cumprimento do art. 163, parágrafo único, da Lei nº 14.133/2021, permitindo o retorno da empresa ao mercado público.
5. Efeitos sancionatórios e responsabilidade administrativa
A Portaria 226/2025 define um regime sancionatório autônomo e escalonado, inspirado na lógica da Lei Anticorrupção e da própria Lei de Licitações.
As condutas sancionáveis incluem:
- não apresentação ou apresentação incompleta da documentação de integridade;
- descumprimento injustificado de prazos e planos de conformidade;
- obstrução à atuação da CGU; e
- declaração falsa em processos licitatórios.
As sanções variam entre advertência, multa, impedimento e declaração de inidoneidade, conforme a gravidade e reincidência da infração.
Esse regime inaugura uma forma de responsabilidade administrativa por omissão em integridade, reforçando o caráter vinculante da política pública.
6. Transparência, monitoramento e controle social
A Portaria impõe à CGU e aos órgãos públicos federais o dever de publicar, em transparência ativa, os resultados das avaliações e reavaliações realizadas, inclusive as informações sobre:
- contratos de grande vulto avaliados; e
- processos de reabilitação de empresas sancionadas.
Essa disposição amplia a accountability do sistema, permitindo que sociedade, concorrentes e órgãos de controle verifiquem a efetividade dos programas e a coerência das decisões administrativas.
O SAMPI passa a atuar, portanto, como uma plataforma pública de integridade, conectando informações sobre riscos, desempenho e conformidade empresarial.
7. Impactos práticos e desafios de implementação
Do ponto de vista empresarial, a Portaria 226/2025 impõe um padrão mínimo de maturidade em compliance para que empresas possam contratar com o setor público federal em grandes projetos.
Isso significa que estruturas de integridade até então voluntárias passam a ser condição contratual obrigatória, especialmente em setores de infraestrutura, energia, tecnologia e concessões.
Os principais desafios para o setor privado incluem:
- documentação formal e evidencial de todos os mecanismos do programa;
- integração entre áreas jurídicas, financeiras e de auditoria;
- adequação das políticas internas ao modelo de avaliação da CGU; e
- capacitação técnica dos responsáveis pelo preenchimento e envio dos formulários.
Para a Administração Pública, o desafio é o balanceamento entre rigor técnico e segurança jurídica, evitando que a avaliação de integridade se converta em instrumento de exclusão indevida de empresas, sem descurar da efetiva prevenção de fraudes e ilícitos.
8. Considerações finais
A Portaria Normativa SE/CGU nº 226/2025 consolida um novo paradigma na relação entre Estado e setor privado: o da integridade como atributo de capacidade institucional, não mais apenas de reputação.
Ao vincular a aprovação de programas de integridade a parâmetros técnicos, evidências documentais e pontuação mínima, a CGU transforma a política de integridade em um mecanismo de governança contratual obrigatória, substituindo práticas declaratórias por critérios de efetividade mensurável.
O modelo instituído coloca o Brasil na vanguarda das políticas de compliance público-privado da América Latina, integrando o ciclo de contratação pública à lógica de gestão de riscos, transparência e responsabilidade corporativa.
Trata-se, portanto, de uma virada institucional que consolida a integridade como eixo estruturante da administração pública contemporânea.
Referência normativa:
BRASIL. Controladoria-Geral da União. Portaria Normativa SE/CGU nº 226, de 9 de setembro de 2025. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 11 set. 2025. Seção 1, p. 118.


