Recuperação Judicial e Falência: o risco penal e os atos de gestão na crise

A crise empresarial representa um dos maiores desafios para qualquer administrador. Em um cenário de insolvência iminente, a pressão por resultados e a necessidade de tomar decisões rápidas podem levar gestores a uma zona de risco complexa, onde a fronteira entre um ato de gestão arrojado e um ilícito penal se torna perigosamente tênue. Compreender os contornos da responsabilidade penal no âmbito da Lei de Recuperação de Empresas e Falências (Lei nº 11.101/2005) não é apenas uma necessidade jurídica, mas uma ferramenta essencial de sobrevivência corporativa.

Diferentemente da responsabilidade do gestor de fundos de investimento, que se concentra no dever fiduciário perante o investidor, a responsabilidade do administrador na crise da própria empresa volta-se para a proteção da coletividade de credores e a preservação do patrimônio que deverá garantir o pagamento do passivo. É nesse contexto que surgem os chamados crimes falimentares.

A “Zona de Insolvência” e o deslocamento do dever do administrador

Muito antes da decretação formal da falência ou do deferimento da recuperação judicial, a empresa ingressa na chamada “zona de insolvência”. Trata-se do período em que, embora ainda operacional, a companhia já não possui meios para honrar suas obrigações. Nesse momento, o dever do administrador se desloca: a lealdade, antes devida primariamente aos sócios e à maximização do lucro, passa a ser para com a preservação da massa patrimonial em benefício de todos os credores.

É justamente nessa fase que decisões aparentemente gerenciais, tomadas na tentativa de salvar o negócio, podem ser reavaliadas sob a ótica criminal. A legislação busca punir não o insucesso empresarial, que é um risco inerente à atividade, mas a fraude e a má-fé que visam prejudicar credores.

Atos de gestão sob risco: as principais condutas criminosas

A Lei 11.101/2005 tipifica diversas condutas. Para o gestor, é mais útil compreendê-las a partir das ações práticas do dia a dia:

  1. Atos de Dilapidação Patrimonial (Art. 168): A forma mais evidente é o desvio direto de bens. Contudo, a prática pode ser mais sutil, como a venda de um ativo estratégico por preço vil para gerar caixa rápido, a constituição de garantias desproporcionais para um credor específico ou a realização de doações injustificadas.
  2. Favorecimento de Credores (Art. 172): Em um cenário de crise, é comum que o gestor pague um fornecedor essencial para manter a operação, preterindo outros credores da mesma classe. Essa decisão, embora possa parecer lógica do ponto de vista gerencial, viola o princípio da par condicio creditorum (igualdade entre os credores) e é tipificada como crime.
  3. Fraudes Contábeis (Art. 168, §1º): A tentativa de ocultar a real situação da empresa por meio de balanços fraudulentos, seja para obter um último empréstimo ou para adiar a percepção da crise, constitui crime. A omissão de lançar passivos ou a superestimação de ativos são exemplos clássicos.
O Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) nos Crimes Falimentares

Uma inovação processual de grande impacto para os administradores é o Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), previsto no artigo 28-A do Código de Processo Penal. Este instrumento permite que, em crimes cometidos sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 anos, o Ministério Público proponha um acordo ao investigado, que, se cumprido, resulta na extinção da punibilidade.

Conforme aponta o material de boas práticas do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), a maioria dos crimes falimentares se enquadra nos requisitos do ANPP. No entanto, a aplicação do acordo nesse contexto possui particularidades relevantes. Uma das condições centrais para o ANPP é a reparação do dano à vítima, salvo impossibilidade de fazê-lo. Nos crimes falimentares, a “vítima” é a coletividade de credores, e o “dano” é o prejuízo causado à massa falida.

Isso cria um cenário complexo: a “impossibilidade de reparar o dano” muitas vezes decorre do próprio ato criminoso que levou ao esvaziamento patrimonial. O CNMP orienta que essa alegação seja analisada com rigor, para que o acordo não se torne um meio de validar a fraude. Para o gestor, isso significa que a disposição para negociar e efetivamente recompor parte do prejuízo causado à massa falida, ainda que de forma parcial, torna-se um fator decisivo para que o Ministério Público sequer considere a propositura do acordo. A celebração de um ANPP pode, portanto, representar uma via para evitar os riscos e o estigma de um processo-crime, mas exigirá uma postura colaborativa e um esforço concreto de reparação.

O fator temporal e a construção da defesa

Um dos pontos mais críticos para o administrador é a fixação do termo legal da falência, um marco temporal retroativo definido pelo juiz que estabelece o início do período suspeito. Atos praticados meses ou até anos antes da falência podem ser reexaminados e, se considerados fraudulentos, dar origem à persecução penal.

Diante disso, a distinção entre uma má decisão de negócio e um ato criminoso reside no dolo, ou seja, na intenção de fraudar. A melhor defesa para o administrador é construída antes da crise se agravar, por meio de uma governança corporativa robusta. A documentação adequada das decisões é a principal ferramenta para comprovar a boa-fé. Atas de reunião detalhadas, pareceres jurídicos e econômicos que embasaram a venda de um ativo, e a criação de um comitê de crise para deliberar sobre os passos a serem seguidos são elementos que podem demonstrar que o gestor agiu com o objetivo legítimo de tentar salvar a empresa, e não de lesar credores.

Conclusão

A travessia de uma crise empresarial exige mais do que habilidade gerencial; demanda uma profunda consciência dos riscos legais envolvidos. A legislação falimentar, ao mesmo tempo em que oferece mecanismos para a reestruturação das empresas, impõe uma responsabilidade severa aos gestores que agem com má-fé. A existência de soluções como o ANPP abre novas possibilidades, mas reforça a necessidade de uma postura transparente. Em última análise, a prevenção ao risco penal não se resume a conhecer a lei, mas a praticar uma gestão diligente e, acima de tudo, bem documentada, protegendo o administrador, a empresa e os legítimos interesses de seus credores.

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